Este filme, "Besouro", de João Daniel Tikhomiroff, surge num momento de "passagem" do cinema brasileiro. Vivemos divididos entre um cinema de autor e um cinema de mercado, entre um cinema que queremos fazer e um cinema que deveríamos fazer. Com a vitória do mercado como deus único, o desejo de significar alguma coisa de importante para o cinema ou para a cultura virou quase um desvio da norma.
Há alguns anos, começaram a vir para cá famosos "script-doctors". Syd Field era um deles; as regras de ouro de Hollywood passaram a ser ensinadas aos diretores do país, como axiomas, dogmas a serem cumpridos sob pena do fracasso. Leis brancas para filmes mestiços, leis de senhores para serem obedecidas: o mocinho, o bandido, o bem, o mal, a redenção final obrigatória. Sumiram os resquícios de zelo dos produtores dos anos de ouro; tudo ficou muito frio, muito bruto.
Há pouco tempo, um executivo declarou que não é mais necessário que o autor tenha amor ao cinema; ao contrário, isso até atrapalharia. Quem filma agora são os produtores.
No filme "Besouro" há alguma coisa parecida com filmes da década de 60, do surgimento do Cinema Novo - o cinema livre dos estúdios, dos arcos voltaicos, o cinema ao sol, ao vento, ao sal, a câmera denunciando injustiças como uma arma, a impaciência com o cinema psicológico, a pele nua contra o figurino, a câmera voadora, movente como um "besouro".
Apesar do som Dolby, da "féerie" tecnológica de "Besouro", lembrei por instantes de filmes como "Barravento" (também na Bahia) ou "A Grande Feira" ou "Ganga Zumba".
A ação se passa em Santo Amaro da Purificação, município do Recôncavo onde nasceu a lenda do capoeirista, no começo da década de 20 do século passado.
Ali, a comunidade de negros tenta se livrar do passado recente - pouco mais de 20 anos desde a abolição da escravidão - e em muitos lugares o trabalho assalariado dos negros e a discriminação permanente não eram muito diferentes do regime escravista.
"Besouro" surge em meio a outros filmes brasileiros, a outros bichos que voam mais baixo, buscando o sucesso comercial tecnicamente programado em computador - o espectador manipulado como num videogame.
Assim como o cinema de estúdio norte-americano era filho do teatro, o Cinema Novo era filho do documentário. "Besouro" sai dessa mesma toca, do desejo de entender o país um pouco mais e da vontade de romper com a linguagem obrigatória do cinema programado. Depois de décadas de publicidade, acho que João Daniel queria ar, voar.
"Besouro" é um filme de ruptura com as regras obrigatórias e também com a própria experiência em propaganda. (Eu já fiz muitos "comerciais" - vivi disso 15 anos - e sei como é; dá vontade de explodir os gabinetes de clientes escrotos; eu fiz um filme em que o cliente nos obrigou a apagar a favela da Rocinha ao fundo dos prédios em lançamento...).
"Besouro" tem uma ideia na cabeça: mostrar a dificuldade de individuação dos homens pobres (mais que negros) através de uma cultura que não chegou pelas caravelas, mas nos navios negreiros. Assim, mostra que o escravismo não cessou com a abolição e também que o racismo vai mais além da pele - se estende a tudo que é "diferente". A fortaleza cultural dos pobres inquieta os capatazes da cultura oficial.
Momentos que podem parecer desvios de narrativa denotam o desejo de partir para a "fábula". Só a fábula dá conta de situações além da pura psicologia realista; só a fábula pula por cima do princípio, meio, fim e do "happy end" simplista.
Recentemente, foram feitos filmes (bons) sobre a miséria, a injustiça social, mas faltavam trabalhos sobre as ameaças à cultura. Existe no Brasil uma grave injustiça antropológica também - não apenas política ou policial. "Besouro" denuncia como a religião afro-brasileira é sabotada por canalhas e exploradores da religião católica ou evangélica. Na Bahia, ainda hoje querem identificar o candomblé com o diabo, aos poucos carcomendo o que havia de mais belo na mais bela de nossas crenças.
Em vez de um Deus ameaçador ou desse recente "deus de mercado" que compra almas pelos dízimos, o candomblé é múltiplo, vê os vários ângulos da personalidade humana; é uma religião "material", com deuses que amam, matam, transam, se vingam, protegem, tudo ligado ao ventre da natureza. Muitos deuses são melhores que um só: mais democráticos.
Não é por acaso que o personagem do Besouro vai fazer sua formação na mata virgem; lá ele fica perto dos animais, do sapo, das cobras, dos besouros; e lá ele domina como um aprendiz "zen" as técnicas de vencer os inimigos, mas também de recivilizar a corrupta e cruel sociedade do latifúndio e do escravismo, do racismo e da exploração sexual das cativas, de transformar o mundo num lugar próximo à raiz da vida natural.
Quem são os poderosos que o Besouro enfrenta? Só fazendeiros e capatazes cruéis? Não. No estilo do filme, nos voos de câmera, no tempo indeterminado e transiente, no ar, no sol, o filme mostra que quer esquecer o individualismo de enredos de pequenos burgueses em crise. Assim, ele vai até a alegoria épica, chega a usar os deuses misturados na trama dos homens, como numa odisseia negra.
Ao lado de Besouro se encontram os orixás, que lhe dão poderes - como voar e ter o "corpo fechado" - e a arte de uma capoeira mágica... Um dos grande momentos é o surgimento de Exu como protetor didático, de Oxum, carinhosa e maternal, ou de Iansã, protegendo o herói guerreiro ao final.
João Daniel fez um filme épico, contra a corrente realista de hoje, com uma fotografia excepcional também do equatoriano Enrique Chediak, com direção de arte de Cláudio Amaral Peixoto e ótimos figurinos de Bia Salgado.
O besouro é um bicho feito para não voar; mas voa. O filme também.
Fonte: O Tempo